ÉLIDA DOS SANTOS
Mês da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha do Clã da Negritude, comemorado no dia 25 de julho, reforça a luta histórica das mulheres negras por sobrevivência em uma sociedade estruturalmente racista, misógina e machista – nos faz refletir sobre a vida dessas mulheres.
Neste mês de julho de 2022, escolhemos 25 mulheres negras que estão se destacando no fortalecimento da população negra em diversas áreas do saber, queremos que o mundo conheça suas histórias e que outras mulheres possam se espelhar e inspirar em suas lutas e experiências de vida.
Nossa entrevistada de hoje é ÉLIDA DOS SANTOS;
Breve apresentação: Instrutora de Pilates Formação Completa, nos Aparelhos e Solo, na Korpus Centro de Reabilitação e Condicionamento Físico Ltda, Novo Hamburgo/RS. Out-Dez/2011.
Instrutora de MatPilates e Pilates com Bola na Korpus Centro de Reabilitação e Condicionamento Físico Ltda, Novo Hamburgo/RS. Ago e Out/2009. Preponente do Interabilita, desde 2009.
Fundadora do Catálogo-Afro – Catálogo de Profissionais Graduados Afrodescendentes.
01. CN. O que significa o mês da mulher negra latino-americana e caribenha. Qual a importância para às mulheres negras?
Élida dos Santos: Significa para mim, um destaque para nós mulheres negras, nossas ancestrais primeiramente falando, que vieram para cá, as Américas, num ambiente de dor, opressão, desumanidade e, e foi dado a elas,aumentar a população negra neste país, e essa população que contribuiu para a sociedade, parindo seus filhos e amamentando muitas crianças brancas, ajudando no crescimento populacional, desenvolvimento econômico e intelectual de nosso país. Isso tudo, como disse no início, com muito sofrimento, porém com uma grandiosidade de serem as grandes protagonistas, e infelizmente não sendo reconhecidas, exaltadas. Este é o grande momento!
02. CN. Em sua opinião as campanhas do mês da mulher negra latino-americana e caribenha cumprem seus objetivos?
Élida dos Santos:: De uma maneira sim, dão a visibilidade para estas mulheres que em sua grande maioria estão no pé da pirâmide social, ainda invisibilizadas, fadadas a serem despreteridas, e nesta data são olhadas, suas histórias são contadas e reverenciadas. De outro modo, a comunidade negra movimenta esta estrutura, mas ainda temos muito para mexer realmente com esta pirâmide e estas estruturas… é velha história: ‘tanto bate até que fura”. Um dia a sociedade como um todo reconhecerá o nosso valor.
03. CN. Em sua opinião o que é mais urgente para as mulheres negras?
Élida dos Santos: Continuar com trabalho de auto-estima e educação, dois pilares importantes para atingirmos o respeito de uma sociedade machista e racista.
04. CN. Qual foi a principal lição que seu pai e sua mãe te deixaram?
Élida dos Santos: Meu pai e minha mãe me deixaram o valor do estudo, através dele, podemos tudo, da dignidade, de se ter respeito pelas pessoas, sobre a importância da família, e sobre a superação, acreditar nos sonhos. Os dois foram criados por outras pessoas, e eles tiveram um sonho de terem a família deles e construíram. Procuraram dar a nós 5 irmãos o necessário para que pudéssemos ter uma vida mais estável, como disse, a educação era a prioridade para eles, e tê-los sempre como o porto seguro, eles foram as referências para todos nós irmãos, de que era família.
05. CN. Como foi a sua infância e o que mais te marcou?
Élida dos Santos: Minha infância foi maravilhosa, em termos de ser criança, poder brincar, estudar, ser cuidada, amada. Sou a caçula, conjuntamente com minha irmã gêmea, de 5 irmãos. Então, eu era cuidada também pelos meus irmãos mais velhos. Nasci, cresci e vivo até hoje num bairro de classe média-alta. Tinha muitos amigos brancos, crianças negras era eu e minhas duas irmãs. Nós morávamos em frente à escola pública e uma praça com brinquedos, quadra de futebol, muitas árvores e muitas crianças…brancas. Sempre estávamos inventando brincadeiras diferentes. Obviamente, havia o racismo, estes são os momentos não tão bons: de crianças falarem que não podiam brincar conosco pela cor, de não podermos entrar no clube de piscina do bairro, porque éramos pretos, de qualquer briga que dava entre nós crianças, era “nega isto, nega aquilo..”. Mas como eu disse, minha educação foi muito forte neste sentido, meus pais tomavam a frente, nos mostravam como tínhamos que nos defender ou eles saíam a nos defender, e ali fui aprendendo a lidar com este racismo estruturado, de ir e fazer valer a nossa cor, a nossa raça e educação. Meu pai era mais afetado, trabalhava no serviço público, vinha sempre contando fatos que aconteciam com ele, então, ele estava sempre nos dizendo como deveríamos nos defender e ir pra cima das pessoas que nos importunássem. Minha mãe, como ficava em casa conosco, era mais tranqüila, mas qualquer desconforto na rua, ela mesma já saía para nos defender.
06. CN. Como foi ser uma menina negra nas escolas de RS?
Élida dos Santos: Estudei do Jardim, Pré-escola, até a terceira série do primeiro grau, em escola pública, em frente do prédio em que eu morava, mas em um bairro classe média, ou seja, a maioria crianças brancas. Era eu, minha irmã gêmea e tivemos outra colega também negra. Ali eu passei e minha irmã também por algumas situações, dos colegas fazerem bulling comigo, com minha irmã e esta colega. Acho que por sermos gêmeas amenizou um pouco, chamávamos atenção por sermos iguais, estarmos vestidas iguais, então as professoras foram queridas, gentis conosco, mas alguns colegas meninos sempre achavam motivo para debochar, rir de nosso cabelo, de nossa cor. Da 4ª série em diante, estudei em escola particular, privada. Meu pai conseguiu bolsas de estudo e colocou nós três mulheres na Escola das Freiras. Ali iniciei, meu trauma com a escola. As freiras separaram eu e minha irmã de turma, eu era a única aluna negra, e minha professora era negra e carioca, mas ela não se achava negra, e assim eu e nada era a mesma coisa, ela sempre falava mal de mim, me chamando de apática, que eu era tímida, que eu não falava. Essas conversas eu ouvia ela falar para o meu pai, que muitas vezes dava carona para ela até a escola. Meu pai, com a cabeça no trabalho nem se deu conta, o quanto ela estava sendo racista e desprezível comigo. No fim, me acidentei naquele ano, tive um traumatismo crânio-encefálico, fiquei um tempo hospitalizada, e ela me rodou. Foi o pior ano da minha vida, que me deixou marcas profundas, que somente agora estou superando. Então quanto ao racismo, era dessa professora, e havia uma freira negra também que não dava a mínima para as poucas crianças negras que havia na escola. E os colegas, minha primeira turma era bem bacana, exceção de um guri. Aquele também rodou e fazia o bulling direto comigo até o final da 8ª série. Minha defesa era ignorá-lo, para mim, ele não era ninguém.
07.CN. O que te levou a escolher a fisioterapia como profissão?
Élida dos Santos: A Fisioterapia veio como segunda opção. Tentei 4 anos medicina. Naquela época existiam 3 faculdades, duas federais, que tínhamos que optar por uma apenas e a particular. Fiz meu segundo grau no magistério, a contra-gosto, meu pai e minha mãe queriam que nós mulheres, caso acontecesse algo com eles, que nós tevéssemos então uma profissão. Queria ter estudado no científico, para me preparar bem para medicina, pois desde que me acidentei, sabia que queria trabalhar com saúde, pois fui muito bem tratada quando tive o traumatismo craniano. Só que não passei nas 4 tentativas, aí meu irmão mais velho sugeriu que eu fizesse outro curso, para não “perder” o ano caso não passasse. Era um sofrimento, cada ano “perdido”. Estudava, estudava, fui para cursinho pré-vestibular, mas chegava na hora não passava. Meu pensamento era o magistério que não havia me dado a base que eu precisava, hoje vejo que não acreditava que poderia passar, achava muito difícil, concentração, concorrência, eu sempre me achava que não tinha a capacidade suficiente para guardar tanta informação. E então, me inscrevi na fisioterapia. Lembro que disse , não quero estudar isso, vou passar na Medicina… e passei na Fisio. Nem sabia o que era Fisioterapia, fui estudando, o curso era de 5 anos , com aulas pela manhã e pela tarde. Havia muita prática, e fui gostando do que fui aprendendo. Inscrevi-me novamente para fazer Medicina, mas no fim não fui fazer a prova. Estava cansada de tanta reprovação. E a Fisioterapia foi aparecendo para mim de uma forma tão bonita e, ao mesmo tempo com um prazer, em poder ajudar. Hoje eu entendo que o movimento humano é tudo. Sempre fui uma pessoa, desde criança, de muito movimento, tanto que quebrei a cabeça, virando de cabeça para baixo! Queria quando pequena ser ginasta, mas minha mãe com medo que eu deixasse os estudos de lado, não me deixou praticar. Assim, a fisioterapia surgiu assim, cumprindo algo que aos 9 anos de idade pensei: trabalhar com saúde e com os lesionados, tudo após o meu traumatismo.
08. CN. Ao longo da sua carreira profissional o que mais te deixou feliz?
Élida dos Santos: Minhas grandes realizações foram: ter montado, executado e mantido o Interabilita, ter aberto meu consultório e estúdio de Pilates e ter ganho bolsa de estudos para participação nos congressos no Canadá e EUA, e nestes congressos , mostrar o meu trabalho lá. O reconhecimento internacional do meu trabalho.
09. CN. Quais são os principais desafios de uma profissional da fisioterapia negra, em RS?
Élida dos Santos: Para mim, o maior desafio é fazer um trabalho de credibilidade, em que a pessoa veja resultado positivo no seu tratamento. Escutei muito do paciente que chegou até mim, vindo de outros lugares, que fizeram a Fisioterapia e não surtiu efeito. Então eu, como profissional negra essa credibilidade duplifica, pelo trabalho como Fisioterapeuta e por ser negra, quero mostrar credibilidade. Meu paciente tem que se sentir bem comigo, no tratamento que aplico, sair dali melhor e concluir o tratamento reabilitado, ou se manter bem.
10. CN. Quando e como a música entrou em sua vida?
Élida dos Santos: A música esteve sempre presente em minha vida. Meu pai e minha mãe eram cantores. Eles cantavam no coral da igreja e outros coros. Meu pai foi aprender a tocar violão clássico e piano, e minha mãe foi estudar canto lírico, e eu em casa vendo tudo isto, comecei a cantar, mas muito tímida. Meu pai, quando eu tinha 15 anos, me colocou na aula de violão popular, em que fiz a formação completa, e depois fiz o violão clássico, foi pouco tempo. Depois de vê-los cantar, entrei para o mesmo coro e fui estudar na escola de música da orquestra sinfônica de Porto Alegre, em que eu estudei teoria, solfejo e canto. Fiquei um ano também lá, por que já estava cursando a Fisioterapia e meu pai pagando a faculdade, assim tinha que me dedicar.
11. CN. Qual é a importância da música para você?
Élida dos Santos: A música é tudo pra mim!! Se pudesse me dedicar mais, faria com toda certeza, mas tem o meu lado de fisioterapeuta que me exige também dedicação, empenho responsabilidade, assim como a música, mas hoje consigo encarar esta missão com mais leveza, sem um crivo grande, que coloquei pra mim mesma, que tinha que melhorar muito para poder cantar. Hj já sei que o que entrego musicalmente e até , em relação a Fisioterapia, é algo genuíno, único, ninguém vai cantar como eu canto, assim como a Fisioterapia, ninguém vai atuar nesta profissão como eu, assim eu deixo a minha marca.
12. CN. “A solidão da mulher negra” é um tema importante para as mulheres, se sim, por quê?
Élida dos Santos: É um tema que atravessa as mulheres negras, principalmente, as que buscam um crescimento intelectual, social e financeiro de destaque. Complicado em encontrar parceiros que não se sintam diminuídos, que não estejam à altura destas mulheres. Ainda vivemos neste pensamento machista, em que os homens querem a “minha preta” para ser a mãe, para serem cuidados, e não vêem com bons olhos esta negra que tem liberdade de se expressar, que freqüenta todos os lugares, que é uma profissional grandiosa, independente. Em contrapartida, nós mulheres pretas somos consideradas exigentes, quando estamos em busca deste homem, que se desenvolveu , progrediu, com uma mente expansiva, que quer evoluir mais, que tem ambição para crescer. Muitas vezes, essa mulher negra vai ser acolhida pelos homens brancos e não pelos seus pares, pois o homem negro ainda tem esta visão, mulher negra abaixo e não na mesma proporção. Obviamente, todos querem ser cuidados, acolhidos, em um relacionamento, queremos mais que um bom sexo, e uma boa conversa, queremos parceria, metas, proposições de vida equânimes, para os dois crescerem mais ainda!
13. CN. Qual é a música que mais te emociona?
Élida dos Santos: A música que mais me emociona é aquela que me diz algo fundo no meu coração, são palavras e melodias que me acalentam que me dizem algo. E que através da minha voz, esse sentimento lindo que desperta em mim, através do meu canto, da minha voz, devolverei, tocarei o coração das pessoas!
14. CN. Porto Alegre é uma cidade racista, mito ou fato?
Élida dos Santos: O Brasil é uma país racista, conseqüentemente o Rio Grande do Sul é um Estado Racista, assim como Porto Alegre também é, e como toda a cidade brasileira também é. Ainda mais pela forte colonização italiana e alemã no Estado. Já Porto Alegre foi desenvolvida por Portugueses , mas depois vieram os colonos do interior do Estado habitar aqui. Nós negros, para variar, tristes histórias, nossos locais, nos quais os negros ocupavam, com a vinda deles, foram diminuindo e eles enviando os negros para os bairros mais afastados e periféricos. Meu pai veio desse momento. Ele foi criado pela madrinha dele, que era lavadeira e morava aqui no bairro, com o passar dos anos, meu pai casou, conheceu minha mãe aqui no bairro e eles fizeram esforços para se manterem morando aqui, mas a família preta que os criou foi para mais longe. Assim, como disse, nasci e cresci e hoje ainda moro neste bairro de classe média-alta, e enfrentei, desde pequena as facetas do racismo, mas isto tudo me fortaleceu, me sinto moradora daqui, e também a resistência. Nós negros temos que estar e ocupar todos os todos os espaços. Assim, aprendi e lidar, já tive meu consultório e estúdio de Pilates aqui no bairro, com uma demanda bem positiva, fechei porque resolvi ir morar nos EUA. E ainda não me deu a vontade de abrir algo novamente, apenas pensando e estruturando, em momento que tiver que ser será.
15. CN. Nos fale do coletivo catálogo afro, seus fundadores, objetivos e atividades?
Élida dos Santos: O coletivo Catálogo-Afro vem com o objetivo de conhecer nossos pares graduados, mulheres e homens que foram para Universidade e trocar informações e fazer o Black Money, ou seja, vender o trabalho que cada um faz, para os seus pares. E nessa vontade, surgiram várias demandas, de trocas de conhecimentos fantásticas! É um grande aprendizado e oportunidade. E, nós sempre pautando, que conhecimento, a educação é a chave que liberta, que nos dá asas para irmos onde queremos. O Catálogo-Afro nisso também se posiciona contra o racismo, é um aprendizado maravilhoso.
16. CN. Quais são os sonhos e planos da Élida dos Santos para o futuro?
Élida dos Santos: Meu sonho é me expandir mais! Quero levar o meu trabalho para a Europa, pois nos EUA ele já obteve o reconhecimento que queria, quero continuar estudando! Minha formação no exterior é minha meta! Quero levar o meu canto para os quatro cantos do planeta, e assim através das minhas mãos, como fisioterapeuta e da minha voz, como cantora, deixar minha marca! Ou seja, minha missão de vida, levar, dar um acalento e ajudar no processo de transformação para a vida das pessoas, do mundo todo!
17. CN. Que conselho você daria para uma jovem negra que quer ser uma profissional da fisioterapia ou da música?
Élida dos Santos: Acredite no seu potencial, no seu diferencial! Não imite ninguém! Cada um vem com seu traço genuinamente seu! Divino, maravilhoso! Escute sua voz inicialmente dentro de si! Cante músicas que possam impactar positivamente as pessoas. Cantemos e louvemos o amor e a paz, de uma forma bonita e cativante! Deixe a sua sensibilidade com a música fluir! Hoje é isto que eu penso, por mais dos meus 51 anos! Quero colocar para o mundo minha sensibilidade, e a partir dela, tocar os corações e transformar vidas. Quanto à fisioterapia, sigo a mesma linha!! Quando me dei conta do meu diferencial, que o meu trabalho ninguém iría fazer o mesmo, que o toque da minha mão, a minha escuta ao paciente, a minha fala, regada de conhecimento, mas muito mais sensível e acolhedora, transformavam, faziam o efeito benéfico para este paciente, foi libertador! Comecei a ganhar força interior para me calcar como profissional! E aí começou a força empreendedora surgir, com o Interabilita e o meu espaço PhysioPilates e Consultório de Fisioterapia!
18. CN. Nos indique três livros que mudaram o seu modo de ver a vida?
Élida dos Santos: Horizontes da Mente, de João Nunes Maia; Guia para uma Vida Feliz, Masaharu Tanigushi, e a Verdade da Vida , também de Masaharu Tanigushi.
Entrevista concedida por Élida dos Santos ao Clã da Negritude. As perguntas foram feitas e respondidas por texto, formato virtual. 30 julho de 2022.
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Incrível! Parabéns!
Entrevista maravilhosa! Parabéns!👏🏾👏🏾