VANILDA HONÓRIA DOS SANTOS

Mês da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha do Clã da Negritude, comemorado no dia 25 de julho, reforça a luta histórica das mulheres negras por sobrevivência em uma sociedade estruturalmente racista, misógina e machista – nos faz refletir sobre a vida dessas mulheres.

Neste mês de julho de 2022, escolhemos 25 mulheres negras que estão se destacando no fortalecimento da população negra em diversas áreas do saber, queremos que o mundo conheça suas histórias e que outras mulheres possam se espelhar e inspirar em suas lutas e experiências de vida.

Nossa entrevistada de hoje é a Vanilda Honória dos Santos;
Doutoranda em Direito pelo Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Santa Catarina. Mestre em Filosofia. Membro do Ius Commune – Grupo Interinstitucional em História da Cultura Jurídica UFSC/CNPq. Consultora da Comissão Estadual da Verdade da Escravidão Negra da OAB/RJ.

O Feminismo Negro ao denunciar o racismo no próprio movimento feminista dá um salto no que diz respeito aos direitos das mulheres, influenciando na elaboração de normas jurídicas e de políticas públicas.

Vanilda dos Santos

01. CN. O que significa o mês da mulher negra latino-americana e caribenha. Qual a importância para às mulheres negras?
Vanilda dos Santos: O mês da mulher negra latino-americana e caribenha cujo ápice é o dia 25 de julho, que foi declarado pela ONU o Dia Internacional da Mulher Afro-latino-americana, Afro-caribenha e da Diáspora, tem um sentido ímpar na luta pelos direitos das mulheres negras. O reconhecimento pela ONU das lutas históricas das mulheres negras contribui para a visibilidade das reivindicações por igualdade nos diversos campos das relações sociais e institucionais, no combate à violência e à discriminação resultante não somente da desigualdade de gênero, mas também do racismo. Além disso, abriu um espaço fundamental para o debate acerca das políticas públicas a serem adotadas pelos Estados-membros, objetivando a efetivação dos direitos das mulheres de forma não discriminatória, o que não seria possível caso a abordagem continuasse sendo unicamente por meio da luta por direitos fundadas no Feminismo universalista de matriz ocidental-europeia. Esses movimentos consideravam a mulher de modo universal, desconsiderando as diversas discriminações que se interccionam, sobretudo a discriminação racial.

02. CN. Em sua opinião as campanhas do mês da mulher negra latino-americana e caribenha cumprem seus objetivos?
Vanilda dos Santos: Acredito que cumpre em partes, uma vez que traz o debate para a cena pública institucional e dos Estados, proporcionando em certa medida a conscientização coletiva. Contudo, o grande problema é que muitas vezes as ações se restringem ao período determinado, ou seja, o mês em questão. É preciso compreender que datas como esta não são comemorativas, como frequentemente são tratadas. São momentos de reflexão e balanço das ações empreendidas no sentido de eliminar as discriminações e de promover os direitos. E a partir daí, projetar o futuro. Caso fiquemos “presos às datas”, não avançamos, pelo contrário, fornecemos “combustível” para camuflar a realidade.

Vanilda dos Santos


03. CN. Em sua opinião o que é mais urgente para as mulheres negras?
Vanilda dos Santos: É difícil responder a esta questão, sobretudo porque há diversos elementos a serem pontuados que dependem de qual mulher negra estamos falando. As situações são as mais diversas, de acordo com a realidade e as oportunidades de cada uma teve ao longo da vida. Podemos falar das mulheres negras que vivem em situação de vulnerabilidade social, sujeitas à violência doméstica e institucionais, por exemplo, as encarceradas, ao desemprego, à fome, às condições insalubres de sobrevivência. Não é novidade que os índices apontam que a maioria da população que vive nessas condições é negra. Podemos falar das mulheres negras que tiveram ao longo da vida um pouco mais de oportunidades, seja pela luta de suas famílias mesmo diante das condições precárias, para que estudar e conseguir trabalho minimamente digno, seja daquelas que por conta das políticas de ação afirmativa ingressaram na universidade e hoje colorem as carreiras que exigem uma formação no Ensino Superior.  Diante do nosso tempo, opto por falar um pouco da situação na qual me insiro, que mescla elementos de todas as situações. Eu estou na carreira acadêmica como estudante de doutorado, caminho que trilho há 17 anos, desde que ingressei no meu primeiro curso de graduação. Muitas mulheres negras, e também os homens negros, romperam a barreira do “lugar” que nos foi destinado pelas mentalidades colonizadas e escravocratas, segundo as quais, serviríamos apenas para os trabalhos braçais e menos valorizados socialmente. Contudo, a formação e o currículo de excelência não são suficientes para garantir o exercício profissional. Há um abismo que não é facilmente vencido para quem não descende de famílias ricas que possuem os contatos e condições para já começaram suas carreiras com muitos, mas muitos passos à frente, enquanto muitas e muitos de  nós, começamos “do nada” e “sozinhos”.

O Estado brasileiro e todos aqueles que lucraram com a escravidão e no pós-Abolição com a instituição do racismo científico e da eugenia (…) têm a responsabilidade na criação e promoção de reparação e compensação aos descendentes.

Vanilda dos Santos

04. CN. Como foi que a Dra. se decidiu ir para a área acadêmica?
Vanilda dos Santos: Essa é uma longa história. Antes de cursar a minha primeira graduação, eu trabalhei durante anos em empresas privadas, no comércio e área administrativa. Ingressei no curso de Filosofia na Universidade Federal de Uberlândia em 2005. Logo no início me apaixonei pela possibilidade de ser professora em uma universidade, o que me fez me dedicar o máximo que pude. Fiz iniciação científica, participei de muitos eventos acadêmicos e conclui a graduação já aprovada no mestrado. O objetivo era fazer o doutorado e poder realizar o sonho de ser professora. Infelizmente as condições não foram favoráveis e eu não fui direto para o doutorado em Filosofia. Dois anos depois ingressei no curso de Direito na mesma universidade, que conclui em 2018. Durante esse período redirecionei meus projetos pra exercer na docência no ensino jurídico, o que me levou a ingressar no doutorado em Direito em 2020, na Universidade Federal de Santa Catarina. O que motivou toda essa trajetória é a vontade de ensinar, mas, sobretudo de contribuir na produção do conhecimento científico e para reformular as bases epistemológicas do ensino jurídico nas faculdades de Direito no Brasil.

05. CN.  Quais os conselhos que daria para uma jovem negra que quer ir para a área acadêmica?
Vanilda dos Santos: O primeiro e principal passo é ter vontade. Se é isso que você jovem negra quer, se agarre com toda força a todas as oportunidades. Muitas vezes elas não existirão, e você terá de criá-las. É preciso ter perseverança e força para superar as dificuldades, e em muitos casos o descrédito de muitos. Mas, assim como nossos antepassados lutaram e prepararam as bases para que nós hoje pudéssemos estar aqui ocupando esses espaços, você também consegue, eu também consigo. E por isso, nossas conquistas não são individuais, são de todos eles e de todos/as nós.

06. CN.  Quais foram as principais dificuldades que encontrou na academia? Os homens negros passam por estas dificuldades?
Vanilda dos Santos. Outra pergunta muito difícil. Daria uma livro. Vou tentar responder de forma mais sucinta.
Foram muitas dificuldades desde o ingresso na universidade como estudante na primeira graduação, e ainda são muitas hoje, já concluindo o doutorado. Desde a necessidade de conciliar o trabalho e o cuidado com a família com o estudos e a pesquisa, ao fato de que se manter na universidade gera um custo material e emocional. Isto porque a estrutura acadêmica não foi pensada para pessoas pobres e negras, e mediante tudo que se apresenta, somos obrigados a nos adaptar. Sobretudo, para quem ingressou antes das políticas de ação afirmativa, como é o meu caso. A realidade ainda não mudou, mas os problemas já são debatidos e existem iniciativas para dirimir as dificuldades.
Os homens negros passam por essas mesmas dificuldades mencionadas, sem dúvida, que são majoradas pelo racismo. Entretanto, as mulheres negras, além de passarem por todas essas dificuldades, sofrem também a discriminação por serem mulheres e por serem negras devido o racismo. Há o que denominamos uma intersecção das diversas formas de discriminação que afeta sobremaneira as mulheres negras.

Isto porque a estrutura acadêmica não foi pensada para pessoas pobres e negras, e mediante tudo que se apresenta, somos obrigados a nos adaptar.
Vanilda dos Santos


07. CN. O acesso a educação de qualidade ainda é uma grande dificuldade para a população negra, como resolver?
Vanilda dos Santos: Sem dúvida. Para resolver esse grave problema que afeta a vida da população é preciso que não somente o Estado brasileiro, mas que toda a sociedade compreenda a importância das políticas públicas. Grande parte das políticas destinadas a combater as desigualdades históricas são encaradas como “políticas de governo”, ou seja, não há continuidade nem efetividade em sua aplicação, nem o entendimento de que são elas que dão efetividade aos direitos fundamentais conforme a Constituição da República. 
Outro fator que deve ser considerado é que não bastam políticas de ação afirmativa, as políticas que objetivam o acesso a direitos, como por exemplo, o direito à educação, são necessárias políticas reparatórias de fato. O Estado brasileiro e todos aqueles que lucraram com a escravidão e no pós-Abolição com a instituição do racismo científico e da eugenia que orientaram as políticas que mantiveram a população descendente de africanos sem acesso à cidadania plena e direitos, têm a responsabilidade na criação e promoção de reparação e compensação aos descendentes. Portanto, o acesso à educação e a qualquer outro direito fundamental envolve muito mais que o ingresso na universidade por meio da reserva de vagas.
A questão passa pela permanência, o acesso e permanência na pós-graduação e as oportunidades no mercado de trabalho, o que caracteriza essas políticas também como uma questão de política econômica. Eu penso que quanto mais entraves os negros tiverem e por mais tempo permanecerem sem o acesso devido, mais privilégios serão garantidos. Já estamos assim há 134 anos, apesar dos tímidos e graduais avanços, o sonho dos escravocratas e dos “abolicionistas” conservadores.

08. CN. Ao longo de sua história pessoal e profissional o que mais te deixou feliz?
Vanilda dos Santos: Considerando que sou mãe e avó, tive e ainda tenho muitos motivos para ficar feliz. Vou destacar aqui o fato de eu conseguir com a ajuda da minha família, sobretudo meus pais, ingressar na universidade e trilhar uma carreira acadêmica como estudante e pesquisadora até aqui. Sou a primeira da minha família, que é imensamente grande, a ingressar numa universidade pública, a primeira a ter o título de mestre e serei a primeira doutora. Não gostaria que fosse assim, mas a nossa história é de luta desde nossos ancestrais, então para chegar até aqui a jornada não tem sido fácil, mas é sim de conquistas. Costumo dizer nos momentos que cogito desanimar que “somos os sonhos dos nossos ancestrais”.

09. CN. Aonde estão as mulheres na filosofia?
Vanilda dos Santos: Estamos aqui e em muitos lugares, presentes e resistentes, apesar do processo de invisibilização, tanto da História da Filosofia quanto nos espaços acadêmicos. E a situação só se agrava quando se trata das filósofas não brancas, sobretudo africanas e na diáspora. No Brasil, contamos agora com a Rede Brasileira de Mulheres Filósofas, que me parece ser uma boa iniciativa de combate à invisibilização das mulheres na produção de conhecimento filosófico.

10. CN. Deixe um texto/poema que mais te marcou.
Vanilda dos Santos: O belíssimo e forte poema de Langston Hugles

Negro Sou Negro:
Negro como a noite é negra,
Negro como as profundezas da minha África.

Fui escravo:
Cesar me disse para manter os degraus da sua porta limpos.
Eu engraxei as botas de Washington.

Fui operário:
Sob minhas mãos ergueram-se as pirâmides.
Eu fiz a argamassa do Woolworth Building.

Fui cantor:
Durante todo o caminho da África até a Georgia Carreguei minhas canções de dor.
Criei o ragtime.

Fui vítima:
Os belgas cortaram minhas mãos no Congo
Estão me linchando agora no Mississipi.

Sou Negro Negro como a noite é negra
Negro como as profundezas da minha África.

(Traduções de Leo Gonçalves)

11. CN. “A solidão da mulher negra” é um tema importante para às mulheres, se sim, por que?
Vanilda dos Santos: Eu não tenho propriedade para falar sobre este tema, uma vez que não é um dos temas que pesquiso. Existem pessoas bem mais qualificadas para explorá-lo melhor. Me aterei a expor uma breve impressão. Considero que é um tema relevante, uma vez que as mulheres negras muitas vezes estão “sozinhas” tanto em relação às relações afetivas quanto em relação aos espaços institucionais. Contudo, considero que os homens negros também passam por situações históricas que não os deixam em condição de vantagem nesses aspectos. Considero um tema muito complexo que deve estar aberto à discussão para não incorrer em equívocos e reducionismos.

No Brasil, contamos agora com a Rede Brasileira de Mulheres Filósofas, que me parece ser uma boa iniciativa de combate à invisibilização das mulheres na produção de conhecimento filosófico.

Vanilda dos Santos

12. CN. O que deseja o feminismo negro? Quais são suas críticas ao feminismo?
Vanilda dos Santos: Vejo um problema nessa pergunta sobre o que eu desejo do Feminismo Negro. Não há o que desejar. Eu enquanto um pesquisadora da história dos direitos das mulheres, considero que o Feminismo Negro, seja enquanto perspectiva teórica, seja enquanto movimento de mulheres, teve e ainda tem um papel fundamental na luta por direitos e pela efetivação desses direitos. E, sobretudo, na luta pelo reconhecimento da humanidade das mulheres negras e das discriminações das quais são vítimas por conta do racismo, que não era considerado pelo feminismo branco ocidental. O Feminismo Negro ao denunciar o racismo no próprio movimento feminista dá um salto no que diz respeito aos direitos das mulheres, influenciando na elaboração de normas jurídicas e de políticas públicas.

13. CN. Como é ser uma mulher negra em sua cidade/estado?
Vanilda dos Santos. É ser uma mulher que luta todos os dias pelo bem viver, por dignidade humana e respeito aos direitos mais fundamentais de um ser humano. É ser neta, filha, mãe, avó, tia e além de tudo, profissional das mais diversas áreas. Ser mulher é acima de tudo, ser humana, embora essa ainda seja uma luta constante. Penso também que assim é em qualquer lugar do país, mesmo com as diferenças regionais e locais.

14. CN. Existe alguma coisa que você gostaria de dizer e que nunca lhe foi perguntado?
Vanilda dos Santos: Não.

15. CN. Quais são os sonhos e planos da Dra. Vanilda H. Santos para o futuro?
Vanilda dos Santos: Prefiro não fazer planos para o futuro. Os meus sonhos (ou de nossos ancestrais) estão sendo realizados no presente, que resultam no meu trabalho enquanto pesquisadora e professora, que resultam na produção de possibilidades de futuro para nossos filhos, netos e as futuras gerações.

16. CN. Que conselho você daria para uma jovem negra?
Vanilda dos Santos: Viva o melhor que puder a sua jornada.

17. CN. Nos indique três livros que mudaram a sua vida?
Vanilda dos Santos: Na verdade, não me recordo de nenhum livro específico que mudou a minha vida. Mas vou indicar alguns que são muito importantes para mim: “A Autobiografia de Martin Luther King”, editada por Clayborne Carson; “Autobiografia de Malcom X, por Alex Harley e “A cor púrpura”, de Alice Walker.

Capa

Entrevista concedida por Vanilda H. dos Santos ao Clã da Negritude. As perguntas foram feitas e respondidas por texto, formato virtual. 23 julho de 2022.

Lembrete: Os comentários não representam a opinião do Clã da Negritude; a responsabilidade é do autor da mensagem.

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