O POETANEGRO CARLOS ASSUMPÇÃO É DOUTOR HONORIS CAUSA

Momento mágico de manifestação do Orum: tambores rufam!  A batucada
quebra o respeitável silêncio no Centro de convenções da Universidade Federal
do Rio de Janeiro. Ao som do atabaque, tocado pelas mãos da mestranda em
ciência da literatura Jade Soares, deuses e mortais se apropriam do seleto
espaço acadêmico. O batuque é promovido pelo poeta Carlos Assumpção que, com
voz dolente, se apresenta na cerimônia de sua premiação: um poeta popular,
engajado nas lutas contra o racismo desde criança, vai à universidade receber o
título de Doutor Honoris Causa.

        Homem negro, com 95 anos de idade
e de origem simples, artista da palavra com inspiração na oralidade, é
reconhecido por seu notório saber a respeito das poéticas orais e por sua
dedicação à poesia. Doutor Carlos Assumpção é professor e advogado com
admirável atuação nas lutas do Movimento Negro. Ele nasceu em Tietê, no
interior paulista, no dia 23 de maio de 1927, mas vive na cidade de Franca,
também no Estado de São Paulo, desde o ano de 1969.

        Decano da literatura
afro-brasileira, personalidade negra internacionalmente reconhecida, o poeta é
um lutador incansável contra a opressão da discriminação racial e contra as
mazelas do processo da escravização negra. Seus escritos se apoiam na ancestralidade
e, do alto de sua posição de griô moderno, ele grita, em Protesto: “Senhores/ O
sangue dos meus avós/ Que corre nas minhas veias/ São gritos de rebeldia”.

        Dos versos de seu poema Protesto,
declamado durante a cerimônia da premiação:

Mesmo que voltem as costas
Às minhas palavras de fogo
Não pararei de gritar
Não pararei
Não pararei de gritar.

Senhores
Eu fui enviado ao mundo
Para protestar
Mentiras ouropéis nada
Nada me fará calar

Senhores
Atrás do muro da noite
Sem que ninguém o perceba
Muitos dos meus ancestrais
Já mortos há muito tempo
Reúnem-se em minha casa
E nos pomos a conversar
Sobre coisas amargas
Sobre grilhões e correntes
Que no passado eram visíveis
Sobre grilhões e correntes
Que no presente são invisíveis
Invisíveis mas existentes
Nos braços no pensamento
Nos passos nos sonhos na vida
De cada um dos que vivem
Juntos comigo enjeitados da pátria
 […]

        O poeta foi saudado pela equipe
da UFRJ: a reitora, Denise Pires de Carvalho; a diretora da Faculdade de
Letras, Sonia Reis; o chefe do Departamento de Literatura, Ricardo Pinto de
Souza; e o professor, pesquisador das poéticas negras e indígenas e também
poeta, Alberto Pucheu. Um momento de emoção e de superação compartilhado
pela escritora e poeta indígena Eliane Potiguara, igualmente laureada com o
título de Doutora Honoris Causa, nessa mesma cerimônia.

        O reconhecimento do valor de
poetas negros e indígenas nos espaços acadêmicos representa um grande passo
para a superação dos silenciamentos históricos impostos durante o processo
violento de colonização do Brasil. São esses apagamentos seculares que ajudam a
escamotear facetas importantes da história do nosso país e contribuem para
tornar a percepção da realidade distorcida.

        A produção literária de poetas
considerados periféricos traz para o universo dos leitores a voz do povo
brasileiro com nossas diversidades, múltiplas subjetividades e identidades
plurais. Assim, a literatura cumpre um importante papel de lançar luz sobre a
complexidade do que se convencionou chamar de pátria brasileira. A arte da
escrita literária reafirma que somos plurais e diversos: somos pátria e mátria,
afrodescendentes, indígenas, europeus, ciganos, asiáticos, judeus. Enfim,
somamos com a intensa movimentação que houve nessas terras desde o período das
invasões coloniais.

             
E como nos ensina o poeta Carlos Assumpção, é preciso: “conversar/ Sobre coisas
amargas/ Sobre grilhões e correntes/ Que no passado eram visíveis/ Sobre
grilhões e correntes/ Que no presente são invisíveis/ Invisíveis mas
existentes”. É preciso conversar, compreender para expurgar o fantasma do
preconceito dos nossos dias e da nossa história. O povo preto não aceita mais
conviver com grilhões: nem no corpo, nem na mente e nem na alma. Nós somos livres!

         A sociedade deve acompanhar
o processo de evolução de algumas instituições, como a UFRJ, que vem,
paulatinamente, reconhecendo e valorizando os sujeitos e os saberes suprimidos
pela norma epistemológica dominante. A sociedade precisa compreender a
necessidade urgente de combater todos os tipos de preconceito. Então, a
sociedade precisa compreender que é preciso combater, de forma veemente e
inadiável, o racismo em todas as suas instâncias e manifestações.

        As estratégias de dominação e de
silenciamento precisam parar de fazer vítimas. Políticas públicas de reparação
aos povos negros e indígenas são fundamentais para a construção de uma
sociedade menos injusta e menos violenta. É preciso um mínimo de justiça para
fazer cessar o grito dos “enjeitados da pátria”. É preciso acordar da pátria, a
Mãe Gentil, para fazer jus à alma do Brasil.

        Parabéns à equipe da UFRJ!
Parabéns ao professor e pesquisador  Alberto Pucheu! Parabéns ao poeta
Carlos Assumpção! Parabéns à poeta indígena Eliane Potiguara! Parabéns aos
estudantes de Literatura da UFRJ! Parabéns aos diversos povos que compõem a
sociedade brasileira! Parabéns aos intelectuais e artistas que resistem à
tentação de acreditar em uma história única de nação! Parabéns aos que
combatem, cotidianamente, o epistemicídio, o racismo e todas as formas de
preconceito!


Heliene Rosa
Escritora, poeta, pesquisadora, professora de Língua Portuguesa e Literaturas. Articulista do Blog Feminário Conexões e de sites independentes participa de coletivos femininos e da negritude. Doutora em Estudos Literários e mestra em Linguística Textual. Contadora de histórias, palestrante e articuladora de projetos literários. Recebeu prêmios em concursos literários e pedagógicos e tem publicações em antologias nacionais e internacionais. Organizou Antologias poéticas e científicas e tem publicações acadêmicas sobre a produção das mulheres na literatura brasileira Contemporânea.

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