A TRAJETÓRIA DE UMA MULHER PRETA DA PERIFERIA ATÉ A ACADEMIA

“A quem possa interessar…”[1]

[1] Rap do artista GOG presente no álbum: Aviso às Gerações – Data de lançamento: 2006.

Ao fazer este exercício de voltar no tempo, inevitavelmente associo o falecimento materno a migração periférica. Na década de 1990, eu e meus irmãos fomos para o Valo Velho, extremo sul da cidade de São Paulo, tive contato com uma realidade completamente diferente daquela vivida no Ipiranga (região central de São Paulo). As ruas ainda não possuíam pavimento asfáltico, inúmeras famílias migrantes encontravam asilo por lá, existia avícolas por toda parte, um clima que mesclava características rurais e privações de recursos públicos. A ausência de equipamentos culturais e sociais marcavam as singularidades vividas pelos jovens, que só quem estava por lá, realmente entendia a áurea tensa e ao mesmo tempo bucólica. Muitas literaturas fazem questão de salientar a periferia como algo sobrenatural ou mágico, mas nós que vivemos as agruras cotidianamente, sabemos quais são as nossas dores e tristezas ao acessar algumas memórias. Particularmente, toda aquela poeira do ônibus velho, as privações, e a falta de acesso aos espaços de lazer trazem a mim a insatisfação e inconformidade diante daquela realidade.


A presença e permanência preta em espaços historicamente brancos está longe de ser pacifica, pensar – se em espaços segregacionista é também pensar que estamos construindo legados de resistência ao mesmo tempo. Temos ciência que esta não é tarefa fácil, ou mesmo que estamos imune aos percalços da vida, mas sabemos que essa luta não é solitária, trazemos conosco cicatrizes que nos lembram de onde viemos e para onde vamos!

Venho de uma família militante do movimento negro, essencialmente matriarcal, composta por mulheres que precisaram criar os filhos umas das outras sozinhas, e desde muito cedo preparar todos para o enfrentamento das desventuras da vida. Segundo elas, havia necessidade de apurar nossa óptica e nos posicionar energicamente e reagir diante do julgamento moral, racismo e assédios de diversas formas. Durante as conversas informais com as mulheres mais velhas enfatizavam a importância da articulação entre mulheres, afim de impedir que atrocidades acontecessem, como violência sexual disfarçada de amparo afetivo, intolerância a nossa ancestralidade ou mesmo perseguição política, pois segundo elas devemos estar articuladas intencionalmente nos espaços.

Ao experimentar a USP, em meados de 2002, percebi o caráter elitista, quando não permitiam que alunos oriundos do cursinho popular, pobres e pretos estudassem nas salas de aula (mesmo quando vazias), pois era inadmissível compartilhar o espaço voltado aos alunos oficiais oriundos da aristocracia e elite paulistana.


O caminho até a aprovação no vestibular foi longo e repleto de esforços, por vezes acreditei que não daria conta, mas diante dos trancos e barrancos fui aprovada e concluí a graduação em Ciências Sociais na Universidade Estadual Paulista – Unesp e após 9 anos retornei à Universidade de São Paulo – USP, agora como pós graduanda, na condição de mãe solo, e morando do extremo oeste da Grande São Paulo.

Em 2018 cursava mestrado em Mudança Social e Participação Política na Escola de Artes Ciência e Humanidades (EACH) – Universidade de São Paulo campus Leste. Tive acesso ao edital promovido pela Cátedra Olavo Setúbal de Arte, Cultura e Ciência do IEA projeto Democracia Artes e Saberes Plurais, sabia que aquela poderia ser uma oportunidade que almejei por muito tempo, realmente estava diante do que sempre vislumbrei. O ingresso no projeto traria realizações pessoais, ao mesmo tempo compromissos públicos que transcendem as propostas padronizados na realidade universitária. Como mulher preta tornar-me supervisora de equipe dentro do projeto que atua em comunidades importantes como Jardim Keralux e Vila Guaraciaba – Zona Leste de São Paulo trouxe à tona diversos percalços e enfrentamentos vividos pelos moradores, muito próximo a realidade pessoal. Entendi que a dignidade humana e o sentimento de pertencer são adquiridos ao mesmo tempo que os vínculos se fortalecem. A relação com a equipe composta, majoritariamente, bolsistas negros facilitou a criação de vínculo solidários e proporcionou uma atmosfera importante para permanência na instituição.

A presença e permanência preta em espaços historicamente brancos está longe de ser pacifica, pensar – se em espaços segregacionista é também pensar que estamos construindo legados de resistência ao mesmo tempo. Temos ciência que esta não é tarefa fácil, ou mesmo que estamos imune aos percalços da vida, mas sabemos que essa luta não é solitária, trazemos conosco cicatrizes que nos lembram de onde viemos e para onde vamos!

Orcid:https://orcid.org/0000-0002-5134-1038/

Lattes: http://lattes.cnpq.br/7244881370916334

Jacqueline Jaceguai Chagas Nunes dos Santos, doutoranda em Mudança Social e Participação Política PROMUSPP pela Universidade de São Paulo (USP – EACH) email: jacjaceguai@usp.br Orientador: Prof° Dr. Marco Bernardino de Carvalho

Lembrete: Os comentários não representam a opinião do Clã da Negritude; a responsabilidade é do autor da mensagem.

34 thoughts on “A TRAJETÓRIA DE UMA MULHER PRETA DA PERIFERIA ATÉ A ACADEMIA

  1. Jack , com certeza vc é uma referência para muitos que queiram alcançar uma oportunidade nesta sociedade “segregacionista” .
    Te admiro como profissional e colega.
    Abraços!!!!!

  2. Jacque, você é um orgulho e uma inspiração. Uma parceira a quem tenho um carinho imenso! Uma pesquisadora apaixonada!!! Obrigado por poder estar um pouquinho ao seu lado nessa caminhada.

  3. Jacque minha amiga e grande referência pra nós, até hoje ouço “Castelo de Madeira” e me lembro da oportunidade que tive de conhecer essa pessoa singular que é você, Parabéns pelo espaço conquistado, você nos orgulha 👏👏

    1. Meu manow que saudade de você! Como sempre arrancou lágrimas por aqui. Essa história só existe porque pessoas como você estavam do meu lado. Sempre juntos manow!

  4. Que a sua teimosia, leituras e dedicação tragam conquistas epessoais e abram espaços para quem está chegando. Parabéns, Jaque.

  5. Essa segregação é quase que natural, principalmente em espaços como esses. As políticas públicas são muito importantes para oportunizar cada vez mais o ingresso de cientistas pretos e pretas na academia. Ecoar nossas vozes, parabéns pela reflexão, seu relato exprime experiências que notamos e vivenciamos todos os dias. Como é precarizada em alguns aspectos dependendo do bairro que você está. “Estamos construindo legados de resistência”. Você é e uma referência para professores e alunos.

  6. Só quem ousa sentar-se nos bancos da USP entende a violência. E partilho com vc dessa existência naquele espaço. Que bom que ali estamos e permanecemos pq desistir é um verbo inexistente pra nós 😍

  7. Filha querida!
    Vivemos o não todos os dias. O negacionismo nos persegue. Nos negam direitos, nós negam afeto, nós negam cuidado, nós negam trabalho, nós negam espaços.
    Contudo você teve berço. O matriarcado que te gerou, acarinhou e educou também traçou o seu trajeto e provisionou a ti um destino repleto de possibilidades.
    Está Odara! O belo está implícito no processo da sua criação. Vem do ventre e das mãos que te lapidaram.
    Você tem muito pra contribuir: Te deixaram um legado e que Olorum dê a ti sapiência para cuidar.
    Que Papai Ogun te abençoe e proteja.
    Forte abraço.

    1. A bênção! Sabe que estou aos prantos por aqui… Agradeço o carinho e morada no nosso berço ancestral. É sempre uma lição o contato e contribuições que o senhor como um grande Griot nos oferece 💛 Uma honra tê-lo por aqui.

    1. Eu reconheço, e muito, o trabalho dessa grande doutoranda em Mudança Social e Participação Política Jacqueline Jaceguai Chagas Nunes dos Santos. Você é uma representação de uma mulher negra e que está constantemente na LUTA! Parabéns pelo artigo que mostra essa sua constante luta como doutoranda 😉

      1. Filho, que linda surpresa ler o seu relato, tão maduro e inspirador…Vou te contar um segredinho, você é quem me inspira todos os dias.
        Mamãe te ama!

    1. Oi Mike, obrigada por reservar um tempinho e colocar aqui suas impressões. Um grande beijo e sim…a luta continua!

  8. Jacque querida, que bom ler seu relato! Já te admirava antes de poder ver seu trabalho na prática quando você me deu oportunidade com as suas turmas de EJA e antes de sentir na pele como o ambiente acadêmico é pensado não só para não nos acolher, mas deliberadamente pra nos excluir. Conhecer um pouco mais sobre a sua história é inspirador e reforça que a questão não é quem somos nós, mas quem são eles e que é importante a gente permanecer juntes! Você é motivo de orgulho pra nós!!!

    1. Oi minha amiga, professora, irmã de luta! Agradeço a você por reconhecer os nossos esforços, ao mesmo tempo que pensamos como podemos mudar os espaços que pertencemos. Thais, você sabe que contribuiu muito para essa luta… e ainda bem que tem ideia disso! Um forte abraço e sempre na luta, conte com essa irmandade sempre!

  9. Jaqueline, você é um exemplo a ser seguido! E nós pessoas negras que conseguimos nos titular na Universidade Pública Brasileira, temos o dever de levar a mensagem aos demais de que embora o caminho seja árduo, é possível e vale a pena. Trazer mais dos nossos pra este ambiente, vai contribuir pra melhorar a equidade de oportunidades no nosso país! Admiro sua jornada! E sinto orgulho de estar próximo a uma mulher com a sua potência!

    1. Jef, você sabe o quanto é importante o reconhecimento dos pares e a nossa aliança para permanecer nos espaços. Tive muita ajuda e com certeza a visibilidade que pessoas como você oferece é essencial para estar na universidade. Continuamos em frente! Um forte abraço e sigamos.

    1. Professora Tita, querida…
      Obrigada pelo apoio e reconhecimento do trabalho que desenvolvemos na academia e comunidade. Sei que posso contar com a parceria que firmamos e saiba que a recíproca sempre será verdadeira. Um forte abraço e nos vemos nas próximas edições!

  10. Você é inspiração, Jacque!
    Muito obrigada pela força e poder em ressignificar as dores em palavras que fazem qualquer um se questionar de suas verdades.

    Aprendemos muito com você!

    1. Eu quem agradeço por prestigiar essas linhas pretas aqui escritas. Continuamos e sabemos que nosso caminho é mais adiante. Beijos.

  11. Jacqueline, você é uma inspiração, pois nos incentiva a continuar, ao apresentar à academia uma proposta afrocentrada, periférica, de mulher preta, pesquisadora e professora a sua força incendeia, cresce e nos motiva.
    Sua caminhada nos faz acreditar que dá para acessarmos esses espaços acadêmicos, cuja história nos mostram o contrário. Seu relato diz: é possível, mas também é árduo, é de enfretamento e de muitas conquistas. Continue, vejo você maior do que já é.
    Um grande beijo pra ti e desejo muito Axé em sua caminhada.

  12. Minha irmã, agradeço todos os dias por ter pessoas como você, que fortalecem, reconhecem o trabalho e dedicação uma das outras. Agradeço por isso! Um beijo enorme, saiba que me inspiro em lutas como a sua para me guiar e lembrar que não estou sozinha! Beijos e muito Asè.

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